NO TITANIC PANDÊMICO DO BRASIL, A CHINA PROVIDENCIA OS BOTES
- Kévin Litti
- 23 de abr. de 2021
- 5 min de leitura
Sinofobia contribui para desestabilização das exportações brasileiras enquanto o povo paga, com suas vidas, pela descredibilização da vacina.
Por Kévin Litti
Editado por Elisa Romera de Freitas e Reyel Moreira de Souza
No cenário em que vivemos, nossa única certeza é que nada voltará à normalidade conhecida antes da pandemia — desde as relações interpessoais até a economia e a geopolítica.
Trazendo reviravoltas no panorama político, novas prioridades afloraram com o coronavírus: governantes antes populares sofreram com as drásticas mudanças de percepção do povo, enquanto outros, cuja imagem já se encontrava prejudicada, renasceram.
Em contrapartida às tradicionais lideranças dos países centrais¹, estadistas jovens dos periféricos² se destacaram com gestões responsáveis diante da crise. Como exemplo, há a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, que conquistou o incomparável sucesso na contenção do vírus: dentre 5 milhões de habitantes, apenas 2.589 contaminados e 26 mortos.
Essas surpresas na política mundial, assim como o Sars-CoV-2, também iniciaram-se na China que, ao adotar rígidas políticas de contenção viral, livrou-se do título obscuro de “mãe do vírus chinês”, protagonizando um “religamento econômico” enquanto outras nações padecem.
A chegada de Joe Biden à Casa Branca, assim como a dependência de insumos farmacêuticos chineses para a produção de vacinas contra a Covid-19, impõem ao governo Bolsonaro um desafio: a substituição das relações exteriores baseadas na ideologia pelo velho e bom profissionalismo. Retirados de cena desde 2019, os profissionais do Itamaraty precisam retornar ao palco.
A queda de Donald Trump, decepcionante para o chefe de Estado brasileiro, demonstra a necessidade da adoção de uma postura contrária àquela que exerceu em seu relacionamento personalíssimo e unilateral. Agora, Bolsonaro deveria construir uma narrativa institucional com o governo de Joe Biden e cessar os conflitos diplomáticos desnecessários.
Com Bolsonaro, o Brasil está caminhando para transformar-se em um Estado pária da comunidade internacional, assim como foi a África do Sul na época do Apartheid, isolando-se.
O preconceito e a sabotagem à Saúde Pública
O sentimento anti-chinês e a hostilidade a ele atrelada nos distancia do mais importante parceiro econômico, a China, que se tornou estratégica para o Brasil no século XXI. A intolerância de Bolsonaro tachou de inconfiável a "vacina chinesa do João Dória", sem se dar conta de que o imunizante de Oxford, no qual seu governo apostou, também utiliza o Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) chinês.
Ernesto Araújo, ex-ministro, declarou, em janeiro deste ano, aos deputados da Comissão de Combate à Covid: "Não identificamos nenhum problema de natureza política em relação ao fornecimento desses insumos provenientes da China. Nossa análise é de que realmente há uma demanda muito grande por esses insumos. Não há nenhum problema político na relação com a China. Queria reiterar: nós temos uma relação madura, construtiva, muito correta, tranquila com a China".
Em contrapartida, observamos a retardação no acesso à matéria-prima que garantirá o suprimento das duas vacinas aprovadas inicialmente pela ANVISA — a CoronaVac, oferecida pelo Butantan e a Oxford-AstraZeneca, pela Fiocruz — encaminhando-nos ao colapso da saúde pública em virtude de preconceitos xenofóbicos. Enquanto os leitos de UTI estavam lotados, o chefe do Executivo destilava discursos conspiratórios, negando-se a vacinar sua população com produtos chineses.
A China não tem a intenção de romper os contratos que prevêem o fornecimento de insumos para as vacinas contra a Covid. Mas está entendido que a matéria-prima pode chegar mais rápido ao Butantan e à Fiocruz se os gênios de Brasília fornecerem à Huawei, pioneira do 5G do mundo, a oportunidade de experimentar, no Brasil, a tecnologia em primeira mão, nos oferecendo, assim, os imunizantes contra o vírus da sinofobia.
Uma aliança em decadência
O saldo da balança comercial Brasil e China em 2020, de janeiro a outubro, já supera em 5 bilhões o de 2019 inteiro, isso é, exportamos mais do que importamos. Em 2019, são 27,6 bilhões contra cerca de 33 bilhões em 2020. Dessa forma, o Brasil é o país ocidental com balança comercial mais positiva em relações com o país asiático, diferente de Brasil e EUA que permanece no vermelho para o primeiro.
Enquanto isso, Eduardo Bolsonaro, filho do presidente brasileiro, por meio das redes sociais, age como carrasco das relações sino-brasileiras e influencia o ministro das Relações Exteriores a adotar a mesma postura. Assumindo o legado de Trump, Eduardo acusa a Huawei, sem provas, de ser uma ferramenta do Partido Comunista Chinês para espionar o mundo, simpatizando com o projeto Clear Network que, na prática, existe para favorecer as empresas estadunidenses, banindo a Huawei da concorrência.
A resposta oficial da embaixada chinesa veio 60 dias depois: “Na contracorrente da opinião pública brasileira, o deputado Eduardo Bolsonaro e algumas personalidades têm produzido uma série de declarações infames que, além de desrespeitarem os fatos da cooperação sino-brasileira e do mútuo benefício que ela propicia, solapam a atmosfera amistosa entre os dois países e prejudicam a imagem do Brasil”.
A nota é concluída em tom provocativo: “Caso contrário, vão arcar com as consequências negativas e carregar a responsabilidade histórica de perturbar a normalidade da parceria China-Brasil”. As postagens do filho do presidente foram deletadas logo em seguida.
O silêncio do filho “zero-três” do Presidente da República foi imposto por dois movimentos inusitados do seu pai. Em um, Jair Bolsonaro afagou Joe Biden em carta remetida à Casa Branca. Em outro, implorou por uma conversa de telefone com o presidente chinês Xi Jinping. Após dois anos de atraso, o capitão reformado começa a se dar conta de que países não têm amigos, mas sim interesses.
Apesar da balança positiva, o Brasil exporta commodities e pode ser substituído sem dificuldades como parceiro comercial. Ainda mais após a assinatura, em novembro de 2020, da enorme zona de livre comércio asiática entre mais de 14 países. Só o Brasil tem a perder com a queima das relações, ficando por último no desenvolvimento e na fila para os IFA.
O iceberg que afundou o Titanic
O negacionismo científico está cobrando o preço em vidas humanas e não há critérios econômicos ou narrativas que possam desfazer isso. A ciência, antes isolada nos periódicos acadêmicos, deve ser ouvida nos horários nobres e nos palácios de governo.
Bolsonaro encarna a irresponsabilidade de Jay Gatsby — personagem do livro “O Grande Gatsby”, de F. Scott Fitzgerald — e movimenta seus fiéis, principalmente os de carro de luxo blindado, a protestarem com bandeiras verdes e amarelas enquanto a bandeira real segue sendo, ironicamente, manchada de vermelho — de sangue.
Assim, torna-se um imperativo desviar o leme do Brasil do iceberg que ameaça romper seu casco, destruindo a nação. Como? Parando Jair Bolsonaro e sua empreitada macabra de jogar brasileiros contra brasileiros em um futebol político neofascista.
Logo, como pregava Darwin, no campo político também só irão evoluir as relações e governantes que conseguirem lidar eficientemente com a pandemia em suas respectivas nações – salvando a economia e principalmente, poupando vidas.
NOTAS DE RODAPÉ
¹ Países não centrais: são aqueles que não pertencem à hegemonia econômica construída após a Revolução Industrial, podendo ser emergentes ou periféricos.
² Países periféricos: são aqueles que se sustentam pela agricultura, agropecuária e exploração de matérias primas. Aqui, também podem se encaixar enquanto “semiperiféricos” os países que estão passando pelo desenvolvimento industrial.
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